segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Andamos a fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo em casa

 O confinamento veio demonstrar como podemos fazer muitas coisas sem sairmos de casa. Neste momento fazemos claramente coisas a mais em casa, muita produtividade absoluta, mas pouca qualidade relativa. Os dias alongam-se sem barreiras entre a vida caseira e laboral. A casa transformou-se numa escola e os pais impreparados em professores. As crianças vão saltando de sofá em sofá, desejando poder voltar à rua e ao convívio com os colegas, exorcizando e libertando a energia que outrora ecoava coletivamente nos recreios das escolas.  

Os apartamentos ficaram mais exíguos, pois deixaram de ser meros dormitórios. Os lares passaram revelaram a sua ineficiência como máquinas de habitar, pois nunca as preparámos verdadeiramente para isso. Cozinhamos mais, sujamos mais, e em vez de vivermos apenas sobrevivemos mais em casa. Trabalhamos, educamos e pouco descansamos. Estamos todos no limite. 

Fazemos tantas coisas em casa, mas vamos, inevitavelmente, fazendo muitas mal. Faz-se tudo na medida do possível, de um modo que antigamente parecia impossível. Vivemos numa atarefada incompetência, a lidar com plataformas de comunicação desconhecidas onde participamos sem estar verdadeiramente presentes: a fingir que somos professores, a inventar novas formas de trabalhar e sem tempo para descansar. Fazemos isto tudo ao mesmo tempo, enquanto evitamos ser maus pais. As crianças dificilmente percebem que não lhes podemos dar a atenção que desejariam. Afinal, estando sempre em casa é normal que se sintam confusas.  Antigamente só estávamos todo o dia em casa nas férias e fins de semanas. Agora trabalhamos, enquanto garantimos que os nossos filhos têm aulas e fazem os seus deveres, enquanto se acumulam mais e mais tarefas domésticas. Temos toda esta carga sem poder recorrer ao apoio da família alargada. 

Estamos todos, permanentemente, numa situação de contínua pressão. Os pais não estavam preparados para estar tanto tempo com os filhos. O nosso modelo de organização social não previa isso. Mesmo quando um dos pais pode ficar em casa, o que é cada vez mais raro, existe uma rede de relações e atividades que permitem criar quebras para recuperar e desligar da realidade doméstica. Agora não temos nada disso. 

Agora fazemos muito mais coisas, mas não as fazemos bem. Trabalhamos pior, embora o trabalho à distância possa ser muito produtivo. Nestas condições estamos longe de poder potenciá-lo. Estamos ainda mais envolvidos na educação dos nossos filhos, mas sem as devidas competências para isso. Vivemos mais as nossas casas, apesar delas pouco se prestarem a essa intensidade de utilização. Este confinamento está a demonstrar que não conseguimos nem podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Existem limites que temos de respeitar. 

Quando passar esta crise será que algo vai realmente mudar? Sabemos que a memória individual e coletiva são curtas. Mas esta experiência assemelhou-se a um trauma. Quando pudermos será que vamos deixar de correr tanto e tentar fazer tantas coisas ao mesmo tempo? Será? 


Texto publicado no Diário de Leiria.

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Redundâncias da Actualidade - criado em Novembro de 2009 por Micael Sousa





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