segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O ano só recomeça depois de agosto

Escrevo estas palavras com o olhar divido entre o computador e o horizonte, recortado entre os cumes das serras verdes que contrastam com o céu cinzento. O tempo está estranhamente frio, ventoso e escuro para este mês de agosto, mas para mim, apesar de tudo, as férias são neste mês.

Para mim o ano começa realmente em setembro. É assim há décadas, desde que vivi os meus primeiros anos letivos. Por isso a passagem de ano civil sempre me fez pouco sentido. O ano acabava depois das férias de verão, depois dos meus familiares que viviam em França voltarem, depois de provar o sabor do mar da região e do sol que dava lugar às noites quentes e silenciosas, mas que se interrompiam pontualmente pelas festas de aldeia cuja música passei a apreciar cada vez menos. Contudo as férias, para mim, continuaram sempre a ser em agosto, mesmo depois de começar a trabalhar, mesmo naqueles anos em que laborava todo o mês para poder ganhar algum dinheiro antes de voltar às aulas, talvez por isso custasse tanto aguentar aquele tempo fechado numa fábrica.

Mesmo depois de ter começado a trabalhar permanentemente, agosto continuou a ser mágico. Reservei sempre, no mínimo dos mínimos, uma semana para dele desfrutar, reativando memórias antigas. Pois era também o mês em que estavam de férias com os meus pais, habituados à interrupção laboral do ano, quando as fábricas fechavam e os operários tinham um vislumbre do que seria uma vida menos dura. Como filho deste mundo laboral industrial agosto era também o mês da pausa obrigatória, feita por questões de planeamento e eficiência. Era sempre um recomeço produtivo.

Como nos últimos anos andei próximo das escolas e universidades, quer a estudar quer a trabalhar, esta relação com um agosto de interrupção reavivou-se, com novas intensidades. Agora também entram em jogo as férias dos filhos, ritmadas pelos seus próprios andamentos. Apesar da minha família direta já ter voltado de França, herdei uma nova em diáspora. Voltei a recordar a emoção do mês de agosto, do reencontro e dos momentos únicos em espaços que temporariamente se transformam. Voltei, pela minha esposa, a experimentar o ambiente rural, pois hoje a cidade está cada vez mais perto da minha aldeia de origem, cada vez mais um subúrbio. Mais tarde ou mais cedo, a cidade, na sua forma menos densa, lá se irá impor. 

O tempo lá fora continua estranho ao que costuma ser agosto. A pandemia impede os hábitos de convívio, tudo ficou mais distante e condicionado. Até vou sentir falta das festas que habitualmente não aprecio. Aqui na vila que me acolhe por esta altura as coisas continuam a ser vividas a um ritmo mais lento, somente interrompido em agosto, por todos os emigrantes que retornam. Mas aos certo ninguém sabe como será. Vive-se um pouco na expectativa, tentando levar a vida com a normalidade possível.

Apesar de tudo, agosto continua a ser um mês augusto, um mês magnifico. Sem essa pausa seria dificil passar por todos os outros meses, avançar com os anos e ver o mundo a envelhecer enquanto nos reflete.


Texto publicado no Diário de Leiria  

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