segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Devem os pais ficar contentes pela entrada dos filhos no ensino superior?

Estava eu muito bem a divagar pelo Facebook, como num zapping pela vida alheia, e deparo-me por uma quantidade enorme de publicações sobre as novas colocações no ensino superior. Eram principalmente os pais a fazer publicações de excertos fotográficos das colocações e a fazer identificação dos seus petizes e afins. 

Parece-me positivo isto continuar a ser um motivo de orgulho. No entanto, afinal, para que serve um curso superior? Muitas profissões dependem desses cursos, e existe ainda uma certa consciência de que o conhecimento que se obtém nas instituições de ensino superior pode ser útil também para empresas e instituições, que assim ganham valor. E com razão, porque, no fundo, os cursos superiores servem para aceder ao conhecimento. Podem formar bons profissionais ou não, mas devem, forçosamente, ensinar a pensar. 

Muitos dirão que importa é saber fazer. Com certeza que sim. Precisamos das coisas feitas no nosso dia-a-dia, mas só somos o que somos, como espécie, porque aprendemos e criamos, descobrimos e inventamos. Caso contrário ainda estaríamos a viver nas árvores ou nas cavernas. Se estivéssemos sempre a fazer a mesma coisa nunca teríamos chegado onde estamos hoje, embora pudéssemos ter ido já bem mais longe. Poderíamos ter aspirado a isso se tivéssemos mais conhecimento, ter feito enquanto compreendíamos o porquê das coisas e do que fazíamos. 

Nas universidades ensina-se a pensar, lá proporcionam ferramentas para compreender o porquê das coisas. O que não significa que todos usem depois. Alguns ficam apenas pela sua instrumentalização prática, pelo que dificilmente poderão inovar. A grande diferença do conhecimento prático e abstrato é essa. A pratica sabe como se faz, a teoria tenta compreender porque se faz e como se poderia fazer diferente. Com isto a teorização está sujeita ao erro, porque só a religião é certa nos seus dogmas. A ciência é imensamente falível, e é pelo erro que ela própria se desenvolve. Da teoria à prática e vice-versa. 

Outro erro da análise que quero esclarecer, pois pode ter ficado essa ideia, é que a teoria não é oposta da prática, embora a prática possa ignorar a teoria. As teorias pretendem sempre obter validação prática, mesmo nos casos mais conceptuais. Teorizar será visto como uma inutilidade apenas para quem tem défice de conhecimento. Há um mínimo necessário para compreender o seu valor. Apesar da teoria não poder viver sem a prática, a prática pode viver sem a teoria, embora viva mal e se restrinja assim à inovação. Imensas pessoas sabem na prática como se faz uma coisa, mas não se sabem porquê. Sem essa compreensão inovar é um arriscar imprevisível.  

Por isso devemos ficar felizes por tantos jovens estarem a entrar no ensino superior, pois muitos deles vão ter a oportunidade de compreender os porquês.  Alguns deles poderão então ajudar a nossa sociedade, e até a humanidade, a ir além dos seus limites atuais. Não serão todos, mas pelo menos alguns estarão preparados para isso, para benefício geral. 


Texto publicado no Diário de Leiria.


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Redundâncias da Actualidade - criado em Novembro de 2009 por Micael Sousa





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