A terra deu mais uma volta ao sol, marcando assim mais um ano. Definimos o primeiro de janeiro como marca desse ponto de viragem simbólico. Mas poderia ter sido noutro dia qualquer. Precisamos de atribuir significados a tudo, e a mudança de ano é um dos mais importantes. Organizamos a nossa vida em anos e suas demais subdivisões para medirmos a incerteza da vida.
Organizar a vida em anos permite invocar a metáfora do renascimento. Num ano que correu mal, em que a taxa de mortalidade voltou um século atrás, precisamos verdadeiramente de reiniciar a vida. Na verdade, o tempo é um fluxo contínuo. Mas para os físicos o tempo pode ser muitas outras coisas, algumas que temos dificuldade em imaginar. Assumimos o tempo como um facto verdadeiro, apesar de poder ser verdadeiramente incompressível. Valorizamos esta verdade como sendo absoluta e imutável, definida e objetiva. Mas a verdade pode ser relativa, dependendo do ponto de vista, do enquadramento e das construções conceptuais sobre a qual é formulada, tal como da luz do seu tempo. A nossa condição humana cobre tudo com o manto da subjetividade e de significados configuráveis, quer queiramos quer não. É essa capacidade que nos faz mover, responder e sobreviver. Faz parte da condição humana, do modo como os nossos cérebros funcionam e se ativam através das emoções. A mudança de ano pode ser algo meramente simbólico, uma construção do real. No entanto, nem por isso deixa de ser importantíssima.
Acreditamos que neste ano de 2021 tudo será melhor. A divisão em anos permite fazer estas barragens, introduzir comportas à negatividade. Celebrar um novo ano pode parecer inútil, mas não é. Essas festividades não têm de estar associadas a um culto ou religião, embora quase sempre estejam, porque cada vez mais se diluem as influências do sagrado e da crença coletiva, tanto que os extremismos tentam chocar para recuperar esses valores perdidos. Ainda assim podemos ver para além do misticismo, saber que é uma criação humana, sem que perca o seu efeito.
Também no ano passado, pela primeira vez, desde da existência da humanidade, a massa de bens artificiais ultrapassou a massa de matéria viva no planeta. Somos animais criativos, tanto que nos autodestruímos. Para além disso, criamos talvez ainda mais coisas imateriais, criamos cultura, criamos significados para o que criamos.
Neste ano acabado de criar, persiste, tal como sempre, a força da imaginação humana como resposta perante o perigo. Nada de novo, embora tenha ficado evidente a dificuldade em ocultar as ameaças. Percebemos o quão frágeis podemos ser. Quão pouco basta para mudar a realidade. Não sabemos ainda quais os efeitos da pandemia no futuro, na nossa civilização, nas sociedades, culturas e economias que gera. Não sabemos propriamente quais as causas e efeitos, quais as relações com o ambiente e o clima. Temos como desafio encontrar essas razões e se necessário os significados para trazer ordem ao mundo, para que, mesmo sujeito a tantas mudanças, possamos criar significados para podermos continuar a viver como humanos criadores.