sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Chuva na rua e jogos na mesa

 Estava com dúvidas sobre o que escrever para esta crónica. Aqui fechados por casa, quase totalmente dedicados às lides domésticas, não ajuda a imaginar algo para partilhar que merecesse ser lido. Na rua paira a ameaça do vírus, que não se assusta sequer com o frio. Através da janela apreciamos a beleza melancólica da chuva que cai do cinzento das nuvens. Acendemos a lareira para partilhar com ela o calor e a vivacidade das chamas. Neste marasmo ocupado, entre tarefas domésticas e os trabalhos de casa dos miúdos, afinal do que valerá a pena falar?

Mas lembrei-me! Nestes dias houve algo que trouxe uma cor que rivaliza com as luzes intermitentes da árvore de natal. Foram as pausas em que conseguimos limpar a mesa de todos os afazeres, libertando-a para um jogo de tabuleiro. O tempo por casa, quando os miúdos estão acordados, passa a correr. Ainda assim, os jogos dão-nos momentos de pausa e de uma animação estruturada, orientada para um prazer que ensina e desenvolve competências. Até o mais novo conseguiu fazer uma jogada! É um orgulho que fica assim remetido às pequenas coisas, instantes passageiros, mas que vão persistir na memória familiar. Com a mais velha, a surpresa é outra. Ganhou-nos finalmente!

Depois lá virá o deitar, já a horas transgressoras. Os miúdos, depois de bem aninhados deixarão outros jogos entrar na sua imaginação. Teremos então o nosso momento de pausa como pais. Fica tanto por limpar. Mais um esforço até a casa ficar disfarçadamente arrumada e o tempo será todo nosso, todo o pouco tempo que resta. Lá ao fundo o sofá chamará, mas a mesa vence, convida a mais uma partida. Chegará o momento de jogar um jogo mesmo só para nós, experimentar uma cumplicidade intelectual, num momento de partilha e competição que nunca nos destrói, só reforça. Lá fora o frio reclamará pelo nosso calor. Quererá entrar, quererá jogar connosco. Mas o novo troco que colocamos na lareira ajudará.  

Estes dias de inverno, ainda mais isolados que nos anos anteriores, viramo-nos para dentro, para aqueles que nos são mais próximos. Privamos e interagimos. Procuramos novas formas de nos conhecer e explorar. Experimentamos novos jogos. 

Para estes dias de isolamento e frio, de luz decresce, a cada dia que passa, os jogos de tabuleiro podem ser a nossa iluminação artificial. Podem trazer momentos de partilha, de intimidade, de dinâmicas controladas, para todos e todas. Através das suas peças podemos viajar para outras realidades, imaginários ilimitados. Jogar um jogo de tabuleiro é partilhar e colaborar, é aprender e decidir passar um momento de proximidade. 

Bem, o mais novo já acordou da sesta. Começam outros jogos, vamos rolar pelos tapetes. Escalar pelos sofás, progredindo até aquela almofada mais distante. Vamos imitar animais, assumir outros papeis, rir e explorar o desconhecido. Logo à noite poderemos descansar, e até jogar um novo jogo mais sério. Quem sabe? Sabemos apenas que não queremos parar de jogar tão depressa, mesmo que o calor da rua venha e as paredes não nos sejam impostas. 


Texto publicado no Diário de Leiria

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